A Presença Indígena na formação do Brasil, de João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes volume 2. Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 978-85-60731-17-6. Disponível em http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.
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Em A Presença Indígena na Formação do Brasil há um recorte histórico dos povos indígenas que se diferencia do lugar-comum tradicionalmente trabalhado no ensino básico e superior brasileiro, justamente por contar esta história sem encerrá-la apenas nos aportes da dominação, colonização e “civilização”, onde o indígena estaria posto como o acidental, passivo, exótico e/ou passageiro. O livro parte da perspectiva de que os povos indígenas foram (e são) agentes importantes na formação da sociedade brasileira – territorial e politicamente – seja pela sua organização sociocultural e pelo uso e controle dos recursos naturais existentes, seja pelas formas de resistência à colonização.
Este livro é o segundo volume da série Vias do Saberes, desenvolvido pelo Projeto Trilhas do Conhecimento: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil.1 Tal projeto propõe a instrumentalização política dos textos apresentados para servirem como pontos de partida à formação dos estudantes indígenas (e subsidiariamente dos não-indígenas também) de nível superior para aguçar a percepção quanto aos amplos desafios à sua frente, numa realidade social onde as diferenças socioculturais tornam-se direitos e o protagonismo indígena condição fundamental para a efetivação destes direitos.
Os autores, João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire, possuem sólida formação e atuação em pesquisas voltadas para a área da Antropologia. Pacheco de Oliveira possui doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professor titular do Museu Nacional e um dos coordenadores do Laboratório de Pesquisas sobre Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED). Rocha Freire é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e pesquisador da Instituição há 20 anos.
Embora a proposta dos autores seja a de “fornecer informações básicas sobre a presença e a participação dos indígenas no processo de formação do Brasil”, (p.17) a estrutura do livro – composta de quatro partes que contém sub-capítulos – comporta relato histórico que analisa desde as primeiras experiências de contato dos povos indígenas com missionários no regime de aldeamentos, no início do século XVI, até a formação do movimento indígena no final do século XX. Esta estrutura é recortada por remissões a fontes de pesquisa (bibliografia complementar) e leituras adicionais (trechos de livros, documentos, leis entre outros), que visam aguçar a curiosidade do leitor para a pesquisa sobre a questão indígena; ao mesmo tempo, compõe as históricas relações interétnicas pelas vias físicas e simbólicas, demonstrando que os imaginários sobre os indígenas constituídos ao longo do período de contato foram (e são) causas e conseqüências das práticas interétnicas.
Na primeira parte do livro, os autores analisam o regime dos aldeamentos missionários, compreendido entre os anos de 1549 e 1755. Esse projeto de colonização identificava os indígenas de duas formas: os aliados e os inimigos, reservando a cada uma das disposições “ações” e “representações” distintas. Se por um lado os índios considerados “bravos” (inimigos) estavam sujeitos a serem subjugados política e militarmente para a garantia de sua catequização, por outro, os índios “mansos”, se tornavam aliados após serem trazidos a força de suas aldeias e convertidos à fé cristã – de forma a não existir, para ambos, o “reconhecimento da relatividade das culturas nem de espaços significativos de autonomia (p. 35)”.
Os aldeamentos viabilizaram a ocupação territorial, servindo como espaços à catequização e civilização dos índios. Os missionários utilizavam os índios aliados “na defesa do território conquistado em face dos índios bravios ou dos invasores estrangeiros (franceses, holandeses etc.) (p. 43)”, motivo para que eles tratassem bem os índios “mansos”, fazendo uso de mecanismos compensatórios como as sesmarias e o pagamento de salários.
A partir de 1530, com a instalação das colônias no Brasil, figuram as primeiras práticas de sujeição de índios aliados, “empregados na defesa do território e como mão-de-obra na construção de prédios, igrejas e vilas (p. 39)”. No período, o trabalho escravo indígena se tornou a principal mão-de-obra nos engenhos e nas cidades. Contudo, a resistência indígena à escravização, a proliferação de doenças “de branco” entre os índios e a introdução do tráfico negreiro, foram fatores que marcaram o declínio do trabalho escravo indígena ao final do século XVI.
Especialmente em relação à resistência indígena, Pacheco de Oliveira e Rocha Freire observam que desde os primeiros contatos com os colonizadores, e durante todo o período do regime de aldeamentos missionários, “cada povo indígena tomou forma peculiar de reação, tendo por base o seu dinamismo e criatividade (p. 51).” As resistências à colonização – como nas diversas alianças tomadas por lideres indígenas com objetivo de proteger os interesses de seus povos ou nas fugas e rebeliões de índios nos aldeamentos – influenciaram os processos de territorialização ante as complexas articulações do contato interétnico, que não pode ser reduzido ao binômio extermínio e mestiçagem.
Na segunda parte do livro, os autores discorrem sobre as duas formas de administração dos indígenas que sucederam o regime de aldeamento. A “assimilação” e a “fragmentação” marcam as características do Diretório dos Índios e a posterior retomada missionária, em período datado entre 1755 e 1910.
Inserido no contexto de separação entre o Estado e a Igreja e de modernização dos aparelhos estatais do governo geral de Marques de Pombal, em 1757 o governador do Maranhão e Grão-Pará implantou o Diretório dos Índios nesta região, expulsando as ordens missionárias que administravam os índios. Em 1758, o regime dos Diretórios de Índios alcançou todo o território da Colônia. Entre as ações que o Diretório deveria desenvolver, destacamos: a configuração das aldeias em vilas, onde os índios passariam a ser governados por juízes e vereadores, como formar de igualá-los (do ponto de vista colonizador) aos demais cidadãos da colônia; a imposição do aprendizado da língua portuguesa para os indígenas; e, a promoção do casamento entre brancos e índios.
Após a independência do Brasil, os missionários retomaram a direção do projeto de catequização e civilização dos indígenas. A estratégia missionária era atrair “a atenção dos índios com objetos para a agricultura ou o uso pessoal... [para] estimular a curiosidade e despertar o desejo por partes dos índios de relacionamento com os brancos (p. 81)”, possibilitando, assim, a catequização.
Nesse segundo período, os autores reforçam a pluralidade das formas de resistências indígenas à dinâmica colonial, principalmente através da participação nas revoltas da Cabanada e da Cabanagem, que identificam a presença de indígenas em ambos os lados do conflito – entre os revoltosos ou em prol do governo.
Na terceira parte do livro os autores analisam o desenvolvimento das políticas e instituições indigenistas, estatais e religiosas, ao longo do século XX (1910-1988), reunidas sobre a caracterização de regimes tutelares. Nesse sentido, enfatizam a tutela do indígena por meio da ambigüidade político-ideológica de sua condição de (re)produção, pois “o tutor existe para proteger o indígena da sociedade envolvente ou para defender os interesses mais amplos da sociedade junto aos indígenas(p. 115)?” A noção de “amplitude” destes interesses societais remete à idéia de “grande cerco de paz” que Antonio Carlos de Souza Lima (1995) utiliza para explicar o regime tutelar, ou seja, a manutenção do interesse da (guerra de) conquista por outros meios (pacificação e integração/aculturação) como substrato elementar da intervenção física e simbólica sobre povos/sujeitos indígenas, provocando tanto suas eliminações quanto a constituição de novas relações sociais.
Acima de tudo, o regime tutelar preconiza a formação de relações de poder enraizadas nos mesmos pressupostos ideológicos do período colonial, legitimadas pela sustentação de uma alteridade radical, a qual a imagem construída e difundida sobre o “outro” indígena – como “selvagem” ou “ingênuo” – funciona como mecanismo de destituição de sua autonomia política e instituição de sua inclusão social subordinada pelas vias do nacionalismo homogeneizador.
A passagem do regime de tutela – estatais e religiosos – para o de autonomia dos povos indígenas é fruto do processo de redefinição da cidadania indígena comungada com a renovação de sua imagem pública pela entronização social das coletividades indígenas como agentes políticos construtores de suas histórias.
O final da parte três e a parte quatro do livro definem os parâmetros desta re-elaboração do ser indígena, traduzida, inicialmente, pela confrontação das imagens de índio “selvagem” ou “ingênuo” – determinadas por agentes externos – pela do “índio rebelde”, a partir da década de 1970, fruto da atuação de lideranças e organizações indígenas na luta pelos seus interesses e direitos.
Se a quarta parte do livro é demarcada entre os anos de 1988 a 2006, é porque seu ano inaugural é também o marco jurídico da promoção político-institucional do reconhecimento da diversidade cultural. A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou não só a garantia de normas constitucionais de afirmação plena da identidade e capacidade indígenas, mas também a intensa participação de lideranças, entidades e povos indígenas, durante a Constituinte, na defesa de seus interesses à consolidação de direitos que expressassem suas vontades e necessidades.
Cabe fazer menção ao livro organizado por Ana Valéria Araújo (2006) e ao trabalho de Gersem dos Santos Luciano (2006), integrantes da mesma série da obra ora resenhada, pois trazem outros subsídios teóricos para que se entenda o contexto dos eventos que levaram à modificação jurídica e institucional da cidadania diferenciada indígena em 1988, e possui como marco político decisivo a constituição do movimento indígena, na década de 1970, fundado na crença fundamental de que
“ao invés de aguardarem ou solicitarem a intervenção protetora de um ‘patrono’ para terem seus direitos reconhecidos pelo Estado, os índios precisam realizar uma mobilização política própria – construindo mecanismos de representação, estabelecendo alianças e levando seus pleitos à opinião pública (p. 187).” |
Durante as décadas de 1970 e 1980, essa ação política tomou visibilidade, no âmbito nacional e internacional, por se contrapor às tradicionais relações paternalistas das instituições estatais e religiosas, posicionando-se à margem da política indigenista oficial, num sistema de reivindicações e pressões que passaram a forçar o Estado a agir na efetivação dos direitos dos indígenas.
Pacheco de Oliveira e Rocha Freire analisam os diferentes momentos do movimento indígena, iniciado pela condução de lideranças carismáticas e personalidades midiáticas e, posteriormente, alcançando nível de profissionalização política. Além disso, referem-se à rede de apoio de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e associações pró-índio e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) que fortaleceram a luta dos povos indígenas ao prestar-lhes assessoramentos que respeitassem o caráter protagônico dos indígenas.
Notas
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Araújo, A.V. (org.). 2006. Povos indígenas e a lei do “branco”: o direito à diferença. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes Volume 3. Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional.
Lima, A. C. de S. 1995. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes.
Luciano, G. dos S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes Volume 1. Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional.