Povos Indígenas e a Lei dos Brancos: o direito à diferença, organizado por Ana Valéria Araújo. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes volume 3. Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 85-98171-59-X. Disponível em http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.
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Os indígenas advogados indígenas (ou indígenas juristas como talvez prefiram) são os protagonistas de Povos Indígenas e a Lei dos Brancos: o direito à diferença, livro organizado – e em boa parte escrito – por Ana Valéria Araújo. Autores dos ensaios que compõem a terceira e última parte do livro, os indígenas advogados compartilham reflexões e experiências acumuladas na luta em defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, dando concretude às questões levantadas por Ana Valéria – a única advogada “branca”, “não-indígena”, entre os autores – nas duas primeiras partes do livro: o que significa e como garantir, de fato, o direito à diferença, conquistado pelos povos indígenas com a Constituição Federal de 1988.
Ao organizar o livro, Ana Valéria Araújo (2006:17) discute os direitos indígenas no Brasil propondo “uma análise não apenas dos direitos específicos estabelecidos pelo ordenamento jurídico, mas também uma reflexão comparativa a partir dos direitos garantidos a todos os brasileiros.” Ao tratar da lei dos “brancos”, o objetivo é instrumentalizá-la pelos (e a favor dos) povos indígenas no Brasil, a fim de assegurar o direito à diferença.
Terceiro volume da série Vias dos Saberes, desenvolvida pelo Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil, do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a finalidade da publicação, como nos explica o prefácio, é fornecer subsídios à formação de estudantes indígenas em nível superior. A coleção, portanto, destina-se, sobretudo, aos indígenas estudantes em cursos de graduação no Brasil e os textos
“... visam agregar à experiência de cada um pontos de partida para a composição dos instrumentos necessários para aguçar a percepção quanto aos amplos desafios à sua frente, diante de metas que têm sido formuladas por seus povos, suas organizações e comunidades” (Souza Lima 2006: 11). |
Revela-se, assim, o caráter instrumental da série, isto é, seus textos pretendem funcionar como instrumentos políticos na promoção (e não mero reconhecimento) da diversidade sociocultural. E, se estamos falando de lutas políticas, o objetivo da publicação nos indica quem são os atores políticos que devem travá-las: os próprios povos indígenas, compreendidos aqui como sujeitos históricos, agentes sociais (e não vítimas) de sua própria história, como propôs Manuela Carneiro da Cunha (1992).
O protagonismo indígena na defesa de seus direitos e interesses – como nos informa Gersem dos Santos Luciano, índio da etnia Baniwa, antropólogo e autor de outro volume da série – fortaleceu-se no Brasil desde a década de 1970, quando se deu o surgimento e consolidação do movimento indígena organizado, num processo de luta, mobilização e pressão dos índios que resultou na conquista histórica dos direitos indígenas na Constituição de 1988, que afirmou os povos indígenas como “protagonistas, sujeitos coletivos e sujeitos de direitos e de cidadania brasileira e planetária” (Luciano 2006: 19).
É nesse contexto que a publicação do livro organizado por Ana Valéria Araújo se insere. Não é por acaso, portanto, que os autores da obra são todos – com exceção de Ana Valéria – indígenas advogados. Os ensaios autorais escritos por eles são, em boa medida, resultado, não apenas, da reflexão em torno dos direitos indígenas, mas da atuação política de cada um deles na defesa de tais direitos. São idéias e experiências de como utilizar a lei dos “brancos” na defesa dos direitos indígenas, do direito à diferença.
No ensaio Terras Indígenas: a casa é um asilo inviolável, Joênia Batista de Carvalho – advogada Wapixana que tem trabalhado especialmente na defesa dos direitos territoriais indígenas, com atuação destacada na luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol – aponta os avanços trazidos pela Constituição de 1988 no que se refere aos direitos territoriais indígenas, como o indigenato, que reconhece o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios ocupados tradicionalmente, afirmando a necessidade de luta para que esses direitos sejam garantidos de fato, com a efetiva proteção do Estado. A autora destaca a difícil relação entre propriedade indígena e propriedade privada e defende que a inviolabilidade do domicílio seja aplicada em relação às terras indígenas, uma vez que enquanto espaço de habitação ordinária, no qual é vedada a entrada sem consentimento, “as terras indígenas são o domicílio por direito, a habitação necessária à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas” (p. 93).
Em O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos indígenas, Paulo Celso de Oliveira – advogado Pankararu, que tem ampla experiência advogando para povos e comunidades indígenas, por exemplo, no Instituto Socioambiental – discute as relações construídas entre o direito dos povos indígenas e o direito ambiental, uma vez que a legislação ambiental vem se constituindo como importante instrumento de defesa dos direitos e dos interesses dos povos indígenas. Não obstante, o autor destaca os conflitos que vêm ocorrendo entre o direito ambiental e o direito indígena, principalmente no que tange à sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, embora os povos indígenas sempre tenham elaborado formas de desenvolvimento que contribuem para a preservação do meio ambiente. Paulo Pankararu evidencia, assim, a necessidade de construção de um enfoque etnoambiental que permita tratar os conflitos a partir da visão ambiental dos povos indígenas, tendo como pressupostos a proteção e o desenvolvimento econômico, cultural e social de tais povos.
No ensaio A proteção legal do patrimônio cultural dos Povos Indígenas no Brasil, Lucia Fernanda Jófej – advogada Kaingang que é membro-fundador do Núcleo de Advogados Indígenas do Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI) – revela parte de sua experiência profissional na defesa dos direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas. A autora procura sistematizar alguns instrumentos jurídicos existentes, em nível nacional e internacional, que tratam da utilização do patrimônio cultural dos povos indígenas, apontando as principais dificuldades na aplicação dos mecanismos de proteção da propriedade intelectual dos povos indígenas (como o não reconhecimento da natureza coletiva desse patrimônio e a dificuldade de sua valoração econômica). Destaca, também, questões ignoradas na aplicação prática do ordenamento jurídico vigente, o que leva à necessidade de criar um sistema específico de proteção fundamentado no respeito e no reconhecimento da diversidade cultural e jurídica de cada povo indígena.
Em Desafios e perspectivas para a construção e o exercício da cidadania indígena, Vilmar Martins Moura Guarany – advogado Mbyá-Guarani que exerceu o cargo de coordenador geral de defesa dos direitos indígenas na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e integrou grupos de trabalho sobre direitos indígenas na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização dos Estados Americanos (OEA) – trata da nacionalidade indígena e da atual legislação sobre a temática. O autor destaca o modo como os índios são reconhecidos pelas diferentes legislações brasileiras e pelas políticas públicas que possuem recorte étnico e que são implementadas pelo Estado. O advogado Guarani problematiza a questão da cidadania indígena, expondo alguns entraves cotidianos ao seu exercício, os quais, para o autor, poderiam ser superados por meio do entendimento de que toda a legislação vigente é aplicada aos povos indígena no sentido de garantir direitos.
Por fim, o ensaio Os Direitos Humanos dos Povos Indígenas é de James J. Lenoir – ou S. James Anaya, como é conhecido –, advogado e professor de leis e política de direitos humanos da Faculdade de Direito da Universidade do Arizona, autor de diversas obras nas áreas dos direitos humanos internacionais, do direito constitucional e dos direitos dos povos indígenas, que trabalhou como advogado em defesa dos povos indígenas americanos e minorias, e que representou povos indígenas perante organizações e tribunais internacionais. No ensaio, James Anaya reflete sobre a legislação e a jurisprudência internacional sobre direitos indígenas, destacando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como o instrumento mais concreto de expressão dos direitos indígenas, e que vêm dando impulso para que sejam publicadas declarações a respeito dos direitos indígenas no âmbito da ONU1 e da OEA.
Mas tais ensaios, como dito, compõem (apenas) a terceira parte da obra. As duas primeiras partes, escritas por Ana Valéria Araújo, pretendem situar o debate sobre os direitos indígenas, traçando um panorama histórico do reconhecimento desses direitos e fazendo uma análise do direito indígena aplicado.
Na primeira parte, Ana Valéria Araújo apresenta ao leitor a evolução histórica dos direitos dos povos indígenas no Brasil. À página 24, a autora mostra como “os direitos dos povos indígenas, hoje fundamentados na Constituição Brasileira, foram sendo conquistados e amadurecidos no curso de uma história nem sempre justa ou generosa, que, por muito tempo, sequer permitiu aos índios se fazerem ouvir”, acrescentando que, do período colonial, no qual “simplesmente não se cogitava dar aos conquistado nenhum direito” e da política tutelar (no período republicano) que pretendia integrar os índios à sociedade “nacional”, assimilando-os, chegamos à Constituição de 1988. Resultado da intensa mobilização indígena durante o processo constituinte, a Carta de 1988 representa, segundo a autora, um marco divisor para a avaliação da situação dos índios hoje, uma vez que de desde sua promulgação houve um avanço significativo na proteção e no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no país. Nas palavras de Araújo (p. 45):
“... o diploma constitucional quebrou o paradigma da integração e da assimilação que até então dominava o nosso ordenamento jurídico, assegurando aos índios o direito à diferença, calcado na existência de diferenças culturais, e garantindo aos povos indígenas permanecerem como tal, se assim o desejarem, devendo o Estado assegurar-lhes as condições para que isso ocorra”. |
Na segunda parte do livro, Araújo apresenta o estado da arte em relação aos direitos dos povos indígenas. Essa tarefa pressupõe não apenas discutir os marcos legais em que o debate sobre esses direitos se situa (Constituição de 1988, Código Civil, Estatuto do Índio, Convenção 169 da OIT) como também a aplicação prática e efetividade de tais direitos no cenário brasileiro. Para a autora, embora a Constituição Federal tenha revolucionado os padrões de relacionamento dos povos indígenas com o Estado brasileiro, quebrando premissas e superando preconceitos até então arraigados em nosso ordenamento jurídico, os índios ainda estão distantes até mesmo do pleno gozo dos direitos a eles garantidos.
Ana Valéria Araújo apresenta, portanto, os avanços na legislação, ao mesmo tempo em que revela as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas para concretizarem o direito à diferença, assegurado (formalmente) pela lei “branca”. E os advogados indígenas autores da obra, por sua vez, oferecem, como vimos, a ampla experiência que possuem na defesa do direito à diferença operando “por dentro” da lei dos “brancos”.
Além disso, da leitura dos textos, percebe-se que, ao tratarem do direito “branco”, os indígenas advogados trazem novas perspectivas para o mesmo, uma vez que, “aportando as visões próprias daqueles que foram treinados para operar o ordenamento político brasileiro... [os advogados indígenas] são portadores também da singular experiência de vida de serem integrantes autóctones das Américas” (Souza Lima, p. 14).
Vista sob esse prisma, é possível perceber a importância da formação jurídica para povos indígenas – revelada, em boa medida, pelo livro organizado por Ana Valéria Araújo – uma vez que a posse do conhecimento jurídico “branco” permite-lhes, como fazem os autores desta obra, utilizar os instrumentos da lei “branca” – mas a partir de suas sensibilidades jurídicas peculiares2 – para dar efetividade àquilo que conquistaram a duras penas na Constituição de 1988: o direito à diferença.
Notas1Em 13 de setembro de 2007, foi aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, tendo o Brasil como país signatário.
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Carneiro da Cunha, M. 1992. Introdução a uma história indígena, in História dos índios noBrasil. Organizado porM.C. da Cunha. São Paulo: Cia. das Letras.
Geertz, C. 1998. O Saber Local. Petrópolis: Vozes.
Luciano, G. dos S. 2006. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes. Volume 1. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm
Souza Lima, A. C. 2006. Prefácio, in Povos Indígenas e a Lei dos Brancos: o direito à diferença Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes. Volume 3.Organizado por A.V. Araújo.
Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional. Disponível em http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm